Carta de uma recém chegada.

08:30

Geração bonita, da alma feia. — Autor Desconhecido.
Carta de uma recém chegada.
Sou aquela velhinha da foto na estante da casa pacata da cidade grande. Quando olham para aquela foto começam a memoriar sobre meus doces, como eu era amável com meus netos, ou ainda como eu era engraçada correndo atrás do meu filho mais velho, para apanhá-lo com a vassoura por algo que ele fez - mas jurava que não…

Minhas dores não ficaram estampadas nas fotos e nem rabiscadas no desbotar das paredes da minha casa, que ficou para o neto mais novo. Nenhum deles sabe que minha vida não foi das mais belas, mas foi das mais vivas, admito. Houve tempos em que chorei, mas não viram; houve tempos em que quis desistir de tudo, mas por cada sorriso dos meus filhos e netos, me pus a continuar; eles mal desconfiam, que essa velhinha foi uma mulher muito requisitada.

Trabalhei mais do que minha mãe julgaria saudável e mais do que meu pai acharia de bom senso... Conheci dois amores da minha vida, além dos meus meninos; um se foi antes que pudêssemos firmar um olhar, e o outro... Bom o outro ficou, fez morada e partiu antes de mim, para depois vir me buscar, um cavalheiro a moda antiga, eu diria. Quando fiquei sozinha, não estive solitária, meus meninos me mostraram que havia muito o que ser feito, então ainda assim vi nascimentos, fui a velórios, visitei pessoas que nunca mais chegaria a ver em vida; e a dor foi se acomodando, foi criança raiz mas ficando suave.

Era possível lembrar de tudo, mas agora eu sei de muito mais! Sei que fiz o que pude e disse o que devia dizer a quem queria me ouvir. Não dei tanto trabalho assim, não sou tão difícil de ser amada, já que não peço por isso... E agora todos pensam mais em mim do que eu gostaria, não é muito saudável me colocar no meio das tarefas chatas da rotina, por favor, me levem para dançar, para conhecer lugares novos, aos quais minhas pernas frágeis não puderam chegar por chão. 

Sei que não serei esquecida, pois família passa de pai e mãe para filhos, e família é muito mais do que só sangue, engloba vizinho, professor, amigos, parentes dos amigos; até que quando viu, já tem um bairro todo sentindo nossa energia, e quando a gente parte, parte da gente fica com cada um deles, eles vão distribuir tudo o que fomos e fizemos, por onde eles forem; vão fazer valer cada dificuldade e cada riso que desabrochou em vida.

Quem olha aquela foto envidraçada na estante do meu neto menor só vê parte de mim, uma parte bonita e retratável, a parte que eles levam dia a dia, enquanto eu os acompanho daqui, em uma caminha mais longa, e onde minhas pernas não fraquejam tanto, onde minha mão está bem segura, ao lado de quem me esperou partir, para poder ficar.


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